Poderíamos
dizer que dois conceitos fundamentais nas narrativas patriarcais são senhorio e
serviço. Esses dois conceitos, como vimos no post anterior, foram apresentados num contexto de conflito. Tal
conflito não é entre senhorio e serviço, como veremos, mas entre o exercício do
senhorio (e a experiência do serviço) a partir da cultura monárquica, urbana e
agrária ou a partir da cultura familiar, nômade e pastoril. A grande pergunta a
ser respondida neste post é se, de
fato, a aliança divina com Abraão e sua família, a fim de preservar o cosmo,
alcançará tal propósito por meio de um senhorio que segue o modelo das palavras
de Isaque, em Gênesis 27.28-29, e das pretensões de José em seus sonhos
relatados em Gênesis 37.2-10, ou há outro modelo a ser seguido?
Para
responder a essa pergunta, veremos como a narrativa apresenta (1) o exercício
de poder por parte de José, (2) a relação de José com seus irmãos no contexto
do Egito, (3) o papel de Judá na narrativa de Gênesis 37-50 e (4) a expectativa
de um rei futuro da linhagem de Judá. Neste post,
abordaremos as questões 1 e 2, deixando a 3 e 4 para o post seguinte.
(1) A
narrativa é bastante ambígua sobre como José exerce seu poder no Egito.
Começando pelo lado positivo dessa apresentação, devemos destacar que José
utiliza seu poder para que “a terra não pereça (heb. welō’ ti-kkārēt hā’ārets) de fome” (41.36). Tal
caracterização é importante, pois fala da preservação do cosmo, ou seja, evitar
a “destruição” (heb. kārat) do cosmo
(heb. hā’ārets). Assim, estamos, de
fato, falando de como Deus utiliza a família de Abraão e Sara para preservar o
cosmo. Não só por isso, mas pelo fato de José interpretar sua história,
incluindo os sonhos que teve de senhorio sobre seus irmãos e seus pais, além de
seu sofrimento como escravo e prisioneiro, como sendo um plano divino para
“preservar vidas” (45.5), uma expressão fundamental na narrativa de Noé (Gn
6.19-20),[1] que trata
da preservação do cosmo. Outro elemento importante na interpretação de José
sobre seu senhorio é que ele serviu para “conservar descendência [de seus
irmãos][2] na
terra” (45.7). A palavra final sobre essa questão aparece em Gênesis 50.20:
“Certamente planejastes o mal contra mim. Porém Deus o transformou em bem, para
fazer o que se vê neste dia, ou seja, conservar muita gente com vida”. Essa
interpretação não diz respeito somente ao modo de José tratar sua família, pois
o hebraico, aqui, utiliza “muitos povos” (heb. ‘am-rāb).[3] E isso,
sim, poderia ser uma clara concretização da bênção divina sobre a família de
Abraão e Sara em Gênesis 12.1-3, em que essa família abençoa “todas as famílias
da terra”. O senhorio de José, portanto, pode ser visto como um serviço
prestado aos servos do faraó, isto é, toda a população debaixo do poder de um
rei. Assim, o exercício do senhorio, conforme o plano divino para os “reis” que
procederão de Abraão e Sara, carrega uma responsabilidade de serviço para a
preservação da vida daqueles que são sujeitos a esse senhorio, e não como
prerrogativa para oprimi-los até a morte.
No entanto,
a narrativa é mais complexa do que isso. O simples fato de essa ser, também, a
interpretação de José sobre o plano divino, já coloca em dúvida sua
legitimidade, pois todo rei promove seu poder, incluindo o exercício mais
coercivo desse poder, diante de seus subjugados, como um benefício, até como
uma “vontade divina”.[4] Mas não
ficamos somente com esse ceticismo diante de uma “propaganda política”. A
narrativa também apresenta, com grande seriedade, o lado negativo do senhorio
de José. O senhorio de José não foi somente um serviço prestado a “muitos
povos”, mas também um serviço prestado ao poder do faraó. O plano de José deu a
faraó um fundamento seguro para o típico exercício da autoridade monárquica,
urbana e agrária, o modelo, que retém a propriedade da terra e taxa toda
atividade agrária, explorando seus subjugados. Exatamente o modelo rejeitado
pelo Deus de Abel e de Abraão, como vimos no último post. José diz: “Hoje comprei a vós e a vossa terra para o faraó…
dareis ao faraó a quinta parte das colheitas” (47.23-24). A resposta do povo é
clara: “Tu nos conservaste a vida! Achamos favor aos olhos de meu senhor;
seremos escravos (heb. ‘ăbadîm) do
faraó” (47.25). José, que havia sido escravo, torna escravo todo o povo do
Egito (47.21). Mais trágico, ainda, é que um dos filhos de Israel é quem dá à
monarquia egípcia o poder necessário para, no futuro, escravizar seu próprio
povo.[5] Não é à
toa que Judá fala para José, ainda sem saber de sua identidade: “tu és como o
faraó” (Gn 44.18). A expressão parece despretensiosa, simplesmente como uma
afirmação de quem reconhece o poder de uma grande autoridade. No entanto, é uma
afirmação categórica de Judá, um personagem importante na história, como
veremos no próximo post, sobre o
senhorio de José. A caracterização de José como faraó fala sobre que tipo de
senhorio é exercido por José: senhorio do tipo monárquico, urbano e agrário. E,
ainda mais sério, de onde procede seu poder: o Egito.[6]
Portanto, não podemos ignorar o fato de o senhorio de José ser marcado por
diversos aspectos negativos importantes para darmos uma resposta sobre que tipo
de “reis” procederão de Abraão e Sara, e que servirão para preservar o cosmo,
sendo bênção para todas as famílias da terra, ainda que ele tenha apresentado
características importantes nessa concretização.
(2) A
narrativa também é ambígua sobre como os sonhos de José se cumprem. Pela
caracterização de como os irmãos de José se comportam no Egito, a impressão é
que os sonhos se cumprem de acordo com a interpretação de José e de seus
irmãos, vista no último post. Podemos
avaliar esse comportamento dos irmãos de José a partir do uso da raiz hebraica ‘bd (port. “servir”, “servo”, “escravo”,
etc.). Em 42.10, os irmãos dizem a José: “Não, meu senhor; teus servos (heb. wa‘ăbādeykā) vieram comprar mantimento”.
O mesmo termo se repetirá nos vv. 11 e 13. Já em 43.18, os irmãos expressam o
temor que têm do “senhor da terra”, que poderá puni-los transformando-os em
“escravos” (heb. la‘ăbadîm).[7] Aqui,
vemos nitidamente a diferença no uso da mesma palavra. Em 42.10-11,13, os
irmãos utilizam a expressão como forma de se submeterem à autoridade de um
governante, enquanto em 43.18 eles temem que tal autoridade seja, de fato,
usada para forçá-los ao “serviço”, isto é, fazê-los escravos. Exatamente esta
dinâmica entre “teus servos” e “escravos” aparecerá no capítulo 44.9-34. Os
irmãos continuam se caracterizando como “servos” de José, e a negociação entre
eles estabelece que a punição para o “roubo” da taça, seja quem for o culpado,
será a escravidão (44.9-10). Em 43.28, entra a questão da relação de José com
Jacó. Os irmãos, ao responderam a pergunta sobre seu pai, caracterizam Jacó
como “teu [de José] servo” (heb. le
abdeykā). Parece, portanto, que este é um cumprimento claro dos
sonhos de José. Nem tanto.
Duas coisas
muito importantes e, realmente, inesperadas acontecem. Em primeiro lugar,
quando Jacó vem para o Egito e se encontra com José, ele não se prostra diante
de José, como o esperado para o cumprimento do segundo sonho. Na verdade, ambos
se abraçam e choram (46.29). Mas a narrativa prossegue e afirma que foi José
quem se prostrou diante de Jacó (48.12). A forma como o texto descreve a cena é
importante, pois em vez de apontar para os sonhos de José do capítulo 37,
aponta para o ato de Jacó diante de Esaú em Gênesis 33.3. No caso de Jacó, o
texto hebraico diz: “lipnêhem wayyishtaḥû ’ārtsâ”. Já no caso de
José, o texto hebraico diz: “wayyishtaḥû le’appāyw ’ārtsâ”.
Isso não é uma coincidência textual. A “bênção” de Isaque para Jacó, como vimos
no último post, era o senhorio sobre “seus irmãos” e uma vida de sucesso
agrário, não pastoril. No entanto, é Jacó quem se prostra diante de Esaú, e não
o contrário. Além disso, o ciclo de Jacó, especialmente em Gênesis 30.25-43,
mostra que ele teve um sucesso extraordinário como pastor.[8] Assim, a
“bênção” de Isaque, exatamente aquela que fala de um tipo de senhorio aos
moldes monárquico, urbano e agrário, não se cumpre na vida de Jacó. Da mesma
forma, o segundo sonho de José, que parece apontar para o mesmo tipo de
senhorio desejado por Isaque, não se cumpre, e José se inclina diante de Jacó,
exatamente como Jacó se curvou diante de Esaú. Assim, o texto bíblico nega a
legitimidade da “bênção” de Isaque em Gênesis 27.27-29 e dos sonhos de José,
conforme a interpretação sugerida por José e seus irmãos, em Gênesis 37. Em
segundo lugar, e isso é de extrema importância, José se recusa a cumprir seu
sonho em conformidade com a interpretação anterior de seus irmãos e sua
própria. Em 50.18, após a morte de Jacó, os irmãos estão convictos de que José
se vingará deles e os fará escravos. O texto diz: “Depois disso, seus irmãos
foram, prostram-se (heb. wayyippelū)
diante dele e disseram: Seremos teus escravos (heb. la‘ăbadîm)”. O verbo “prostrar”, usado aqui, é diferente do verbo
“inclinar-se” (heb. ḥāwâ), usado em Gênesis 37.7,9-10, o que já um
indicativo de que não se trata de uma relação exata entre os sonhos e o que
está acontecendo aqui.[9] Mas,
para surpresa dos irmãos e dos leitores, que esperavam que José exerceria o seu
senhorio aos moldes dos monarcas, com seu poder coercivo, ele se nega a exercer
tal senhorio. Pelo contrário, em 50.21, José mostra que seu senhorio, em
relação aos seus irmãos, seria para sustentar os seus irmãos e seus
“filhinhos”. Tal relação tem mais a ver com um serviço que José presta aos seus
irmãos e à descendência deles, do que o contrário. Não devemos esquecer que
José parecia ter compartilhado da interpretação dos sonhos que seus irmãos
fizeram, ou seja, ele parecia desejar esse senhorio de poder coercivo, tendo
seus irmãos como seus “servos”. O que o fez mudar de ideia (interpretação)?
Entre os dois eventos, está a experiência de José como escravo e exilado
(prisioneiro longe de sua terra e família). José experimentou o poder coercivo
aos moldes dos monarcas. Muito provavelmente essa experiência é o que o levou a
entender que o plano divino para seu senhorio seria diferente. Assim, parece-me
que esse desenrolar da história é apresentado pela narrativa bíblica como o
cumprimento dos sonhos de José. O plano divino, revelado nesses sonhos, tem sua
interpretação correta aqui, e não naquela expressada pelos irmãos de José, como
vimos no último post. Não se trata de ter “servos/ escravos”, mas de ser um
“servo” em favor dos outros. E é nisso que está a preservação do cosmo a partir
dos conflitos da família de Abraão e Sara. O resultado do senhorio de José, em
seu serviço prestado à sua família, é que Israel “frutificou” (heb. wayyiprū) e se “multiplicou” (heb. wayyirbū) na “terra” (heb. ’erets) de Gósen (Gn 47.27). Esses termos
destacados apontam para a verdadeira bênção divina em Gênesis 1.28.[10]
Conflitos familiares que levam à preservação do cosmo, assim parece ser o plano
divino para a família de Abraão.
[1] Ver Gordon Wenham, Genesis 16-50 (Dallas: Word,
Incorporated, 1998), p. 428.
[2]
A conservação de descendência será uma questão importante que abordarei no
próximo post.
[3]
Victor Hamilton, The Book of Genesis 18-50 (Grand Rapids: Eerdmans,
1995), p. 706, é mais cauteloso e não identifica quem seriam esses.
[4]
Ao falar sobre algumas inscrições egípcias do Primeiro Período Intermediário (2130-1940),
Enrique Nardoni, Rise Up Oh Judge: A
Study of Justice in the Biblical World (Peabody: Hendrickson, 2004), cita
algumas em que um rei ou algum membro da elite escreve em sua tumba algo como:
“dei pão ao faminto, vesti o nu; ouvi o pedido da viúva, dei casa ao órfão”,
pp. 25-28. Governantes e poderosos sabem muito bem que seu poder deve ser
justificado, e nada melhor do que apelar para o bem dos grupos sociais mais
vulneráveis para tanto.
[5] Ver M. Douglas Meeks, God the Economist: The Doctrine of God and
Political Economy (Minneapolis: Fortress, 1989), pp. 78-9 e Walter
Brueggemann, Genesis (Lousville:
Westeminster John Knox Press, 1982), p. 358.
[6] Ver Raymond De Hoop, Genesis
Forty-nine in Its Literary and Historical Context (Leiden: Brill, 1999), p. 363.
[7]
No último post abordei este versículo
de forma mais abrangente, pois é muito importante para a interpretação da
narrativa.
[8]
É importante notar que Jacó cuida de um tipo específico de “rebanho”. Existem
algumas palavras diferentes para falar de “rebanho no hebraico”. Para “rebanho”
de animais maiores, como bois, típicos da cultura agrária, pois são usados como
“força de trabalho”, o hebraico utiliza “bāqār”.
Já para “rebanho” de animais menores, como cabras, bodes e ovelhas, típicos da
cultura pastoril, o hebraico utiliza “tsōn”.
O termo “miqneh” (lit. propriedade
viva), usado em 30.29, pode servir para caracterizar ambos os tipos de
“rebanho”. No entanto, a narrativa deixa claro que se trata de “tsōn”, pois é a palavra que se repetirá
por todo o trecho (p. ex. 30.31,32,36,38-43). É verdade que o termo “bāqār” aparece para falar do “rebanho”
da família de Jacó (32.8; 33.13), mas sua “cultura”, ou seja, seu estilo de
vida é muito mais caracterizado pelo pastoreio de “tsōn”. Para essas questões, ver Ithamar Gruenwald, Rituals and Ritual Theory in Ancient Israel
(Atlanta: SBL, 2003), pp. 58-59, 77.
[9]
Contra Wenham, Genesis 16-50, p. 490,
que vê aqui uma indicação de volta para os sonhos do capítulo 37.
[10] Ver John H. Sailhamer, The Meaning of the Pentateuch: Revelation, Composition and
Interpretation (Downers
Grove: IVP Academic, 2009), p. 329.