sábado, 3 de setembro de 2016

Conflitos Familiares e a Preservação do Cosmo - José e seus Irmãos (part. 2)



Poderíamos dizer que dois conceitos fundamentais nas narrativas patriarcais são senhorio e serviço. Esses dois conceitos, como vimos no post anterior, foram apresentados num contexto de conflito. Tal conflito não é entre senhorio e serviço, como veremos, mas entre o exercício do senhorio (e a experiência do serviço) a partir da cultura monárquica, urbana e agrária ou a partir da cultura familiar, nômade e pastoril. A grande pergunta a ser respondida neste post é se, de fato, a aliança divina com Abraão e sua família, a fim de preservar o cosmo, alcançará tal propósito por meio de um senhorio que segue o modelo das palavras de Isaque, em Gênesis 27.28-29, e das pretensões de José em seus sonhos relatados em Gênesis 37.2-10, ou há outro modelo a ser seguido?


Para responder a essa pergunta, veremos como a narrativa apresenta (1) o exercício de poder por parte de José, (2) a relação de José com seus irmãos no contexto do Egito, (3) o papel de Judá na narrativa de Gênesis 37-50 e (4) a expectativa de um rei futuro da linhagem de Judá. Neste post, abordaremos as questões 1 e 2, deixando a 3 e 4 para o post seguinte.


(1) A narrativa é bastante ambígua sobre como José exerce seu poder no Egito. Começando pelo lado positivo dessa apresentação, devemos destacar que José utiliza seu poder para que “a terra não pereça (heb. welō’ ti-kkārēt hā’ārets) de fome” (41.36). Tal caracterização é importante, pois fala da preservação do cosmo, ou seja, evitar a “destruição” (heb. kārat) do cosmo (heb. hā’ārets). Assim, estamos, de fato, falando de como Deus utiliza a família de Abraão e Sara para preservar o cosmo. Não só por isso, mas pelo fato de José interpretar sua história, incluindo os sonhos que teve de senhorio sobre seus irmãos e seus pais, além de seu sofrimento como escravo e prisioneiro, como sendo um plano divino para “preservar vidas” (45.5), uma expressão fundamental na narrativa de Noé (Gn 6.19-20),[1] que trata da preservação do cosmo. Outro elemento importante na interpretação de José sobre seu senhorio é que ele serviu para “conservar descendência [de seus irmãos][2] na terra” (45.7). A palavra final sobre essa questão aparece em Gênesis 50.20: “Certamente planejastes o mal contra mim. Porém Deus o transformou em bem, para fazer o que se vê neste dia, ou seja, conservar muita gente com vida”. Essa interpretação não diz respeito somente ao modo de José tratar sua família, pois o hebraico, aqui, utiliza “muitos povos” (heb. ‘am-rāb).[3] E isso, sim, poderia ser uma clara concretização da bênção divina sobre a família de Abraão e Sara em Gênesis 12.1-3, em que essa família abençoa “todas as famílias da terra”. O senhorio de José, portanto, pode ser visto como um serviço prestado aos servos do faraó, isto é, toda a população debaixo do poder de um rei. Assim, o exercício do senhorio, conforme o plano divino para os “reis” que procederão de Abraão e Sara, carrega uma responsabilidade de serviço para a preservação da vida daqueles que são sujeitos a esse senhorio, e não como prerrogativa para oprimi-los até a morte. 


No entanto, a narrativa é mais complexa do que isso. O simples fato de essa ser, também, a interpretação de José sobre o plano divino, já coloca em dúvida sua legitimidade, pois todo rei promove seu poder, incluindo o exercício mais coercivo desse poder, diante de seus subjugados, como um benefício, até como uma “vontade divina”.[4] Mas não ficamos somente com esse ceticismo diante de uma “propaganda política”. A narrativa também apresenta, com grande seriedade, o lado negativo do senhorio de José. O senhorio de José não foi somente um serviço prestado a “muitos povos”, mas também um serviço prestado ao poder do faraó. O plano de José deu a faraó um fundamento seguro para o típico exercício da autoridade monárquica, urbana e agrária, o modelo, que retém a propriedade da terra e taxa toda atividade agrária, explorando seus subjugados. Exatamente o modelo rejeitado pelo Deus de Abel e de Abraão, como vimos no último post. José diz: “Hoje comprei a vós e a vossa terra para o faraó… dareis ao faraó a quinta parte das colheitas” (47.23-24). A resposta do povo é clara: “Tu nos conservaste a vida! Achamos favor aos olhos de meu senhor; seremos escravos (heb. ‘ăbadîm) do faraó” (47.25). José, que havia sido escravo, torna escravo todo o povo do Egito (47.21). Mais trágico, ainda, é que um dos filhos de Israel é quem dá à monarquia egípcia o poder necessário para, no futuro, escravizar seu próprio povo.[5] Não é à toa que Judá fala para José, ainda sem saber de sua identidade: “tu és como o faraó” (Gn 44.18). A expressão parece despretensiosa, simplesmente como uma afirmação de quem reconhece o poder de uma grande autoridade. No entanto, é uma afirmação categórica de Judá, um personagem importante na história, como veremos no próximo post, sobre o senhorio de José. A caracterização de José como faraó fala sobre que tipo de senhorio é exercido por José: senhorio do tipo monárquico, urbano e agrário. E, ainda mais sério, de onde procede seu poder: o Egito.[6] Portanto, não podemos ignorar o fato de o senhorio de José ser marcado por diversos aspectos negativos importantes para darmos uma resposta sobre que tipo de “reis” procederão de Abraão e Sara, e que servirão para preservar o cosmo, sendo bênção para todas as famílias da terra, ainda que ele tenha apresentado características importantes nessa concretização.


(2) A narrativa também é ambígua sobre como os sonhos de José se cumprem. Pela caracterização de como os irmãos de José se comportam no Egito, a impressão é que os sonhos se cumprem de acordo com a interpretação de José e de seus irmãos, vista no último post. Podemos avaliar esse comportamento dos irmãos de José a partir do uso da raiz hebraica ‘bd (port. “servir”, “servo”, “escravo”, etc.). Em 42.10, os irmãos dizem a José: “Não, meu senhor; teus servos (heb. wa‘ăbādeykā) vieram comprar mantimento”. O mesmo termo se repetirá nos vv. 11 e 13. Já em 43.18, os irmãos expressam o temor que têm do “senhor da terra”, que poderá puni-los transformando-os em “escravos” (heb. la‘ăbadîm).[7] Aqui, vemos nitidamente a diferença no uso da mesma palavra. Em 42.10-11,13, os irmãos utilizam a expressão como forma de se submeterem à autoridade de um governante, enquanto em 43.18 eles temem que tal autoridade seja, de fato, usada para forçá-los ao “serviço”, isto é, fazê-los escravos. Exatamente esta dinâmica entre “teus servos” e “escravos” aparecerá no capítulo 44.9-34. Os irmãos continuam se caracterizando como “servos” de José, e a negociação entre eles estabelece que a punição para o “roubo” da taça, seja quem for o culpado, será a escravidão (44.9-10). Em 43.28, entra a questão da relação de José com Jacó. Os irmãos, ao responderam a pergunta sobre seu pai, caracterizam Jacó como “teu [de José] servo” (heb. le abdeykā). Parece, portanto, que este é um cumprimento claro dos sonhos de José. Nem tanto. 


Duas coisas muito importantes e, realmente, inesperadas acontecem. Em primeiro lugar, quando Jacó vem para o Egito e se encontra com José, ele não se prostra diante de José, como o esperado para o cumprimento do segundo sonho. Na verdade, ambos se abraçam e choram (46.29). Mas a narrativa prossegue e afirma que foi José quem se prostrou diante de Jacó (48.12). A forma como o texto descreve a cena é importante, pois em vez de apontar para os sonhos de José do capítulo 37, aponta para o ato de Jacó diante de Esaú em Gênesis 33.3. No caso de Jacó, o texto hebraico diz: “lipnêhem wayyishtaḥû ’ārtsâ”. Já no caso de José, o texto hebraico diz: “wayyishtaḥû le’appāyw ’ārtsâ”. Isso não é uma coincidência textual. A “bênção” de Isaque para Jacó, como vimos no último post, era o senhorio sobre “seus irmãos” e uma vida de sucesso agrário, não pastoril. No entanto, é Jacó quem se prostra diante de Esaú, e não o contrário. Além disso, o ciclo de Jacó, especialmente em Gênesis 30.25-43, mostra que ele teve um sucesso extraordinário como pastor.[8] Assim, a “bênção” de Isaque, exatamente aquela que fala de um tipo de senhorio aos moldes monárquico, urbano e agrário, não se cumpre na vida de Jacó. Da mesma forma, o segundo sonho de José, que parece apontar para o mesmo tipo de senhorio desejado por Isaque, não se cumpre, e José se inclina diante de Jacó, exatamente como Jacó se curvou diante de Esaú. Assim, o texto bíblico nega a legitimidade da “bênção” de Isaque em Gênesis 27.27-29 e dos sonhos de José, conforme a interpretação sugerida por José e seus irmãos, em Gênesis 37. Em segundo lugar, e isso é de extrema importância, José se recusa a cumprir seu sonho em conformidade com a interpretação anterior de seus irmãos e sua própria. Em 50.18, após a morte de Jacó, os irmãos estão convictos de que José se vingará deles e os fará escravos. O texto diz: “Depois disso, seus irmãos foram, prostram-se (heb. wayyippe) diante dele e disseram: Seremos teus escravos (heb. la‘ăbadîm)”. O verbo “prostrar”, usado aqui, é diferente do verbo “inclinar-se” (heb. ḥāwâ), usado em Gênesis 37.7,9-10, o que já um indicativo de que não se trata de uma relação exata entre os sonhos e o que está acontecendo aqui.[9] Mas, para surpresa dos irmãos e dos leitores, que esperavam que José exerceria o seu senhorio aos moldes dos monarcas, com seu poder coercivo, ele se nega a exercer tal senhorio. Pelo contrário, em 50.21, José mostra que seu senhorio, em relação aos seus irmãos, seria para sustentar os seus irmãos e seus “filhinhos”. Tal relação tem mais a ver com um serviço que José presta aos seus irmãos e à descendência deles, do que o contrário. Não devemos esquecer que José parecia ter compartilhado da interpretação dos sonhos que seus irmãos fizeram, ou seja, ele parecia desejar esse senhorio de poder coercivo, tendo seus irmãos como seus “servos”. O que o fez mudar de ideia (interpretação)? Entre os dois eventos, está a experiência de José como escravo e exilado (prisioneiro longe de sua terra e família). José experimentou o poder coercivo aos moldes dos monarcas. Muito provavelmente essa experiência é o que o levou a entender que o plano divino para seu senhorio seria diferente. Assim, parece-me que esse desenrolar da história é apresentado pela narrativa bíblica como o cumprimento dos sonhos de José. O plano divino, revelado nesses sonhos, tem sua interpretação correta aqui, e não naquela expressada pelos irmãos de José, como vimos no último post. Não se trata de ter “servos/ escravos”, mas de ser um “servo” em favor dos outros. E é nisso que está a preservação do cosmo a partir dos conflitos da família de Abraão e Sara. O resultado do senhorio de José, em seu serviço prestado à sua família, é que Israel “frutificou” (heb. wayyiprū) e se “multiplicou” (heb. wayyirbū) na “terra” (heb. ’erets) de Gósen (Gn 47.27). Esses termos destacados apontam para a verdadeira bênção divina em Gênesis 1.28.[10] Conflitos familiares que levam à preservação do cosmo, assim parece ser o plano divino para a família de Abraão.

Poderíamos terminar nosso estudo por aqui, estabelecendo que os “reis” que procederão de Abraão e Sara, para cumprir a preservação do cosmo conforme Gênesis 12.1-3, estarão em conformidade com essa atitude final de José, e não em conformidade com o senhorio de culturas monárquicas, urbanas e agrárias. Contudo, Gênesis 37-50 tem uma estranha intrusão: a história de Judá e Tamar (Gn 38). Essa intrusão, muito aparente, destaca uma intrusão mais ampla, porém mais sutil, do papel de Judá em Gênesis 37-50. Como veremos no próximo post, a narrativa deixa toda a questão do senhorio da linhagem de Abraão e Sara ainda mais complexa do que a mera inversão de um poder coercivo para um poder de serviço.




[1] Ver Gordon Wenham, Genesis 16-50 (Dallas: Word, Incorporated, 1998), p. 428.


[2] A conservação de descendência será uma questão importante que abordarei no próximo post.


[3] Victor Hamilton, The Book of Genesis 18-50 (Grand Rapids: Eerdmans, 1995), p. 706, é mais cauteloso e não identifica quem seriam esses.


[4] Ao falar sobre algumas inscrições egípcias do Primeiro Período Intermediário (2130-1940), Enrique Nardoni, Rise Up Oh Judge: A Study of Justice in the Biblical World (Peabody: Hendrickson, 2004), cita algumas em que um rei ou algum membro da elite escreve em sua tumba algo como: “dei pão ao faminto, vesti o nu; ouvi o pedido da viúva, dei casa ao órfão”, pp. 25-28. Governantes e poderosos sabem muito bem que seu poder deve ser justificado, e nada melhor do que apelar para o bem dos grupos sociais mais vulneráveis para tanto.


[5] Ver M. Douglas Meeks, God the Economist: The Doctrine of God and Political Economy (Minneapolis: Fortress, 1989), pp. 78-9 e Walter Brueggemann, Genesis (Lousville: Westeminster John Knox Press, 1982), p. 358.


[6] Ver Raymond De Hoop, Genesis Forty-nine in Its Literary and Historical Context (Leiden: Brill, 1999), p. 363.


[7] No último post abordei este versículo de forma mais abrangente, pois é muito importante para a interpretação da narrativa.


[8] É importante notar que Jacó cuida de um tipo específico de “rebanho”. Existem algumas palavras diferentes para falar de “rebanho no hebraico”. Para “rebanho” de animais maiores, como bois, típicos da cultura agrária, pois são usados como “força de trabalho”, o hebraico utiliza “bāqār”. Já para “rebanho” de animais menores, como cabras, bodes e ovelhas, típicos da cultura pastoril, o hebraico utiliza “tsōn”. O termo “miqneh” (lit. propriedade viva), usado em 30.29, pode servir para caracterizar ambos os tipos de “rebanho”. No entanto, a narrativa deixa claro que se trata de “tsōn”, pois é a palavra que se repetirá por todo o trecho (p. ex. 30.31,32,36,38-43). É verdade que o termo “bāqār” aparece para falar do “rebanho” da família de Jacó (32.8; 33.13), mas sua “cultura”, ou seja, seu estilo de vida é muito mais caracterizado pelo pastoreio de “tsōn”. Para essas questões, ver Ithamar Gruenwald, Rituals and Ritual Theory in Ancient Israel (Atlanta: SBL, 2003), pp. 58-59, 77.


[9] Contra Wenham, Genesis 16-50, p. 490, que vê aqui uma indicação de volta para os sonhos do capítulo 37.



[10] Ver John H. Sailhamer, The Meaning of the Pentateuch: Revelation, Composition and Interpretation (Downers Grove: IVP Academic, 2009), p. 329.

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Conflitos Familiares e a Preservação do Cosmo – José e seus Irmãos (part.1)



Para os leitores do último post, pode ter ficado a impressão que, no fim, os estrangeiros, representados por Agar, somente participarão da bênção divina, por meio da família de Abraão, caso se submetam à autoridade coerciva do povo de Deus, representado por Abraão e Sara. No entanto, o desenrolar das narrativas patriarcais apontam para outra direção. A própria família eleita precisará sofrer, como Agar sofreu, a fim de se tornar intermediária da bênção divina. A razão disso é que as intrigas e resoluções inconclusivas, o que significa que nunca há uma justiça absoluta para todos os lados do conflito, permeiam as próprias relações da própria família de Abraão. Conflitos surgem no ciclo[1] de Isaque, em que o relacionamento entre Esaú e Jacó é caracterizado por disputas, mentiras, ameaças de morte e fuga. Essa situação se desenrola no ciclo de Jacó, com disputas, mentiras, ameaças de morte e fuga que ocorrem na relação entre José e seus irmãos. Continuaremos em busca de uma relação entre a dinâmica da família de Abraão, na narrativa de José e seus irmãos, e a preservação do cosmo. No entanto, essa abordagem completa será dividida em dois posts, como explicarei logo abaixo.


            Toda a narrativa do conflito entre José e seus irmãos tem um script bem claro: os dois sonhos de José (Gn 37.5-10). Ainda que tais sonhos possam expressar as fantasias de um jovem mimado e pretensioso, o texto os utiliza como linha narrativa, mas não necessariamente para confirmar as pretensões de José. Toda a narrativa é permeada por diversos sonhos. No caso dos sonhos do padeiro e do copeiro (Gn 40), e dos sonhos do faraó (Gn 41.1-36), o texto deixa claro que os sonhos são revelação daquilo que Deus está para realizar (cf. Gn 41.25). Não há afirmação semelhante no caso dos sonhos de José, pois há uma tensão sobre o significado dos sonhos. A família de José os interpreta de uma forma, mas o desenrolar da história de José apresenta outra interpretação. Será necessário aguardar um pouco até que a revelação e a decisão divinas nos sonhos de José apareçam de forma clara.[2] Neste post, me dedicarei a problematizar os sonhos de José, enquanto no próximo trarei à tona a revelação e a decisão divinas que são bem diferentes de tudo o que se esperava a partir desses sonhos.


            Para começar, então precisamos observar as imagens usadas nos sonhos. No primeiro sonho, a imagem é de “feixes no campo” (Gn 37.7; heb. ’ălummîm betôk haśādeh). No segundo sonho, a imagem é de corpos celestes: “o sol, a lua e onze estrelas” (Gn. 37.9; heb. hashshemesh wehayyārēaḥ we’aḥad ‘āśār kôkābîm). Essas imagens carregam importantes significados culturais e relações textuais com outras partes da narrativa. Começaremos com a imagem do segundo sonho.


            Enquanto a imagem de estrelas poderia ser somente uma referência textual ao modo como Gênesis descreve a multiplicidade da descendência de Abraão (cf. Gn 15.5; 22.17; 26.4), há algo mais importante aqui. Em primeiro lugar, a imagem dos corpos celestes aponta para uma realidade cósmica, ou seja, um contexto amplo que abrange toda a realidade criada.[3] O sonho de José revela que toda a dinâmica familiar apresentada nessa narrativa está relacionada com o cosmo. Em segundo lugar, a imagem dos corpos celestes aponta para a forma como essa dinâmica familiar se relaciona com o cosmo: política.[4] Isso é muito importante quando consideramos que o ambiente no qual José exercerá poder político é o Egito, onde o faraó estava intimamente relacionado com o deus-Sol.[5] Já a imagem da estrela é usada como símbolo de figuras reais no antigo Oriente Próximo.[6] Isso aparece mesmo em tradições bíblicas como Nm 24.17;[7] Is 14.12 e Ez 32.7.[8] Essa esfera política aponta para o desenrolar das promessas de Deus feitas a Abraão. Em Gênesis 17.6, a promessa divina de multiplicidade também é uma promessa de proeminência política, pois também é dito que reis procederão de Abraão. Para nosso estudo (ver post anterior), porém, é mais importante que em Gênesis 17.16 a promessa é dada a Sara: “eu a abençoarei, ela será mãe de nações, e dela procederão reis”. Assim, a história de José tem a ver com o cumprimento dessa promessa. O segundo sonho de José deixa claro que estamos lidando com o surgimento de um rei da descendência de Abraão e Sara. Esse fato, especificamente em sua relação com a promessa feita a Sara, é importante por dois motivos: o contexto da promessa em Gênesis 17 é o conflito familiar do capítulo 16, como vimos no post passado, assim como o sonho de José está inserido num conflito familiar; e parte desse conflito, tanto no caso de Sara com Agar quanto de José e seus irmãos, tem a ver com o exercício de um poder coercivo. Assim, poderíamos formular um questionamento: será que esse rei da linhagem de Abraão e Sara levará a bênção divina aos povos por meio de um poder coercivo?[9]


            Os sonhos de José parecem dar uma resposta positiva a essa pergunta. No primeiro sonho de José, a imagem dos “feixes no campo” é muito importante.  Obviamente não se trata de uma imagem do cotidiano típico de uma família nômade e pastoril.[10] Mais uma vez, a imagem poderia simplesmente indicar uma relação textual, pois o governo de José no Egito se concentrará na “coleta” (Gn 41.48; heb. qābats) e “estoque” (Gn 41.49; heb. tsābar) de “mantimento” (Gn 41.48; heb.’ōkel) e “cereais” (Gn 41.49; heb. bar). É claro que essa relação existe, apesar de o texto do capítulo 41 não usar o termo “feixes” aqui. O que é mais importante, porém, é o significado cultural da imagem de “feixes no campo”. Existe outra narrativa de conflito entre irmãos que acontece no “campo” (heb. śādeh):[11] Caim e Abel (cf. Gn 4.8). Nessa narrativa fica clara uma tensão entre o estilo de vida pastoril de Abel, típico do nomadismo patriarcal de Abraão, e o estilo de vida agrário de Caim, típico das culturas sedentárias das monarquias urbanas.[12] No desenrolar da história de Caim, fica claro que seu estilo de vida agrário está relacionado com a construção de cidades (cf. Gn 4.17) e a cultura urbana (cf. Gn 4.19-22), assim como a violência (cf. Gn  4.23-24), características que aparecerão na centralização de poder do tipo monárquico da “Torre de Babel” (cf. Gn 10.8-10; 11.1-9). De fato, a agricultura e a administração urbana formavam uma simbiose econômica, na qual um poder monárquico tem as condições necessárias de exploração da população que cultiva os campos, em benefício da população urbana, exatamente como no Egito.[13] Essa atitude monárquica tem conotações religiosas. Além do fato conhecido de que os reis se viam e eram vistos como representantes divinos, o sonho de José usa um verbo importante para a posição de seu feixe: “ficou em pé” (heb. nitstsābâ). Esse verbo foi usado sobre a posição da escada no sonho de Jacó (Gn 28.12), e a posição de YHWH ao seu lado (Gn 28.13).[14] Com essa identificação textual, assim como o imaginário cultural, podemos dizer que o texto relaciona a posição de José com a posição de um rei como representante divino. No entanto, a narrativa de Abraão, o grande patriarca dessa família que dará origem ao povo de Israel, aponta para um estilo de vida nômade e pastoril como modelo a ser seguido,[15] pois foi preferido por sua divindade (como a escolha divina por Abel e não por Caim). Essa escolha tem muito a ver com a visão crítica que grande parte da tradição bíblica apresenta contra o poder monárquico coercivo, especialmente no âmbito da exploração agrária,[16] mas parece ser nessa direção que caminham os sonhos de José como cumprimento das promessas divinas.[17]


            Não é à toa, portanto, que os irmãos de José tenham ficado indignados com tais sonhos. De fato, a resposta deles, que aparece somente no primeiro sonho, apresenta confirmações importantes para tudo o que foi apresentado aqui. Para eles, o primeiro sonho significa que José irá “reinar” (heb. mālak) sobre eles e os “dominar” (heb. māshal). O texto hebraico é enfático aqui, pois utiliza, nos dois casos, o infinitivo absoluto antes do verbo no imperfeito (heb. hămālōk timlōk; māshôl timshōl).[18] Por isso a tradução da Almeida 21: “Irás de fato reinar sobre nós? Irás mesmo nos dominar?”. Não se trata de uma pergunta a fim de obter uma resposta, mas de uma reprovação contundente.[19] Tal reprovação poderia até ser pelo fato de José ser o mais novo dos irmãos, apontando para uma inversão dos benefícios da progenitura, como aconteceu com Esaú e Jacó (cf. Gn 27). Contudo, os verbos “reinar” e “dominar” apontam para outra direção. Ainda que o verbo “reinar” possa ter um significado mais neutro, o verbo “dominar” tem conotações negativas. Ibn Ezra, o comentarista judeu da Idade Média, diz que māshal é a usurpação do poder, típica dos tiranos.[20] É claro que se trata de uma referência bem distante, mas em Gênesis 3.16, no contexto das “maldições” e de rupturas de relacionamentos, māshal é usado para falar da relação desigual entre Adão e Eva (Gn 3.16). Portanto, estamos lidando com um tipo de poder coercivo. Assim, fica claro, também, o significado de “[se] inclinar” (heb. ḥāwâ).[21] A resposta indignada de Jacó, diante do segundo sonho, enfatiza o gesto de “inclinar-se” (Gn 37.10). Por trás da indignação de Jacó está a memória de ter que “se inclinar” diante de seu irmão, Esaú (Gn 33.3). Ainda que no sonho de José o gesto não seja o inclinar-se “até a terra” (heb. ’āretsâ), é assim que é descrito o gesto de Jacó diante de Esaú (Gn 33.3; heb. lipnêhem wayyishtaḥû ’ārtsâ). Por mais que naquela ocasião o gesto não indique nenhum tipo de relação de reinado, subjugação e coerção, aqui, diante de todos os elementos apresentados, certamente é assim que devemos entender o significado de “inclinar-se”.[22]


Sabemos, então, que a experiência de Jacó contribuiu para ter entendido o segundo sonho de José de forma negativa, mas e seus irmãos, há alguma experiência da parte deles que os tenha levado a interpretar o primeiro sonho da forma que fizeram? O narrador de Gênesis nos deu uma dica importante logo no início do capítulo. Em 37.2, o narrador diz que José, aos dezessete anos, “era aquele que pastoreava” (heb. hāyâ rō‘eh). A sequência da sentença diz, em hebraico, ’et ’eḥāyw. Isso pode significar, “com os seus irmãos” ou “aos seus irmãos”.[23] A decisão, a meu ver, depende do que vem em seguida. O narrador diz que José “levava a seu pai más notícias a respeito deles [seus irmãos]”. É muito possível que, na verdade, José fosse um tipo de “supervisor” de seus irmãos, daí a necessidade do narrador de enfatizar sua juventude (“dezessete anos”). Quando o narrador usa o termo “pastorear” para caracterizar a relação de José com seus irmãos,[24] não há dúvida de que ele o faz consciente do fato de que o termo “pastorear”, usado para relações humanas, carrega o sentido de “reinar” ou “governar” no antigo Oriente Próximo.[25] Dessa forma, José já é descrito como um tipo de “rei de seus irmãos” pelo narrador. Mas a questão principal aqui é que tipo de “rei/ pastor” era José. Diante das imagens usadas em seus sonhos, assim como da resposta de seus irmãos, podemos dizer que José era/ seria um tipo de “rei/ pastor” como todos os outros reis que utilizavam seu poder de forma coerciva e opressora. Os próprios irmãos de José, uma vez no Egito, descrevem o “governador da terra” (cf. Gn 42.6; heb. hāshshalliṭ ‘al hā’ārets) como “senhor da terra” (cf. Gn 42.30; heb. ’ădōnê hā’ārets), que usa seu poder para “[nos] acusar” (heb. gālal), “[nos] dominar” (heb. nāṭal), “[nos] fazer escravos” (heb. lāqaḥ), “tomar [os nossos jumentos]” (heb. lāqaḥ).[26] Esse trecho é muito importante por três motivos: (1) descreve bem o papel dos “senhores da terra”, ou seja, os reis dentro do contexto da monarquia urbana de exploração; (2) descreve o motivo da indignação dos irmãos de José quando seus sonhos de “senhorio” apelam para imagens desse tipo de reinado; (3) descreve bem o que os irmãos de José fizeram com ele, e não o contrário (em Gn 37.24, o verbo lāqaḥ é usado para falar da ação dos irmãos de José contra ele, o que levou á escravidão de José). Como no caso de Agar, Sara e Abraão, não há inocentes na história. Aqui, porém, fica mais claro o fato de que há uma disputa de poder em que o irmão mais novo age como um “rei/ pastor” opressor de seus irmãos, ansiando desempenhar esse papel num ambiente cósmico de dominação, e os irmãos, indignados com tamanha presunção, fazem com José exatamente aquilo que temiam aconteceria com eles pelo poder do “senhor da terra” do Egito.


            Apesar de não ter espaço suficiente para trabalhar a questão com profundidade, vale falarmos um pouco sobre essa trajetória da família eleita, especialmente a partir de uma mudança de paradigma com Isaque. Fica claro que o chamado divino à família de Abraão é a vida nômade e pastoril. Uma forma de estabelecer isso é que a terra prometida a Abraão é chamada de terra de suas “peregrinações” (Gn 17.8). Isaque, no entanto, tem preferências diferentes. Seu ideal não é a vida pastoril, sendo mais atraído pelo “campo” (heb. śādeh). Diferente de Abraão, Isaque “semeia [a] terra” (Gn 26.12). Em Gênesis 27.3, Isaque fala para Esaú preparar uma comida “especial” de algo que apanhará no “campo”. Não se trata, porém, de uma caça selvagem, pois já vimos que “campo” está ligado a terras cultivadas. Estamos lidando, aqui, com um apetite por algo ligado ao “campo”. Para esclarecer como esse apetite não se conforma ao estilo de vida pastoril, o v. 9, quando Rebeca planeja enganar Isaque, ela pede que Jacó traga dois bons cabritos. É claro que pastores também comiam a carne de seus animais, mas não era a refeição comum, já que era o sacrifício daquilo que lhes rendia os meios de sobrevivência. É interessante, também, que Isaque faz uma escolha bem clara em Gênesis 27.27. Jacó, a fim de enganar seu pai, leva sobre as mãos a pele de cabritos, mas não é o cheiro dos cabritos que Isaque dá atenção, como seria o esperado de um pastor, e sim o cheiro do “campo” que emana da roupa de Esaú. Trata-se de uma escolha deliberada por um estilo de vida em conflito com outro.[27] A questão é que esse estilo de vida preferido por Isaque, simbolizado nessa comida “especial”, é do tipo “luxuoso”, típico dos monarcas em seus palácios e ter tal “apetite” é um perigo (cf. Pv 23.3).[28]


            Aqui entra um aspecto mais profundo nessa história. O texto bíblico deixa claro que não se trata de um mero apetite inocente, mas de um estilo de vida característico da vida urbana/ agrícola, típica dos grandes reinos. Isso fica claro quando Isaque “abençoa” Jacó, pensando ser Esaú. Mais uma vez, ele destaca sua preferência pela agricultura e não pelo pastoralismo ao desejar que seu filho receba “lugares férteis da terra”,[29] “fartura de trigo e de vinho novo” (Gn 27.28). Mais importante, contudo, é que logo a seguir, Isaque diz: “sirvam-te povos, e nações se curvem diante de ti; sê senhor de teus irmãos, e os filhos da tua mãe se curvem diante de ti” (Gn 27.29). Como é possível notar, já superficialmente, esse desejo reflete muito do que aparece nos sonhos de José. A segunda parte, que fala sobre as dinâmicas familiares, deixa clara a relação. O verbo “curvar/ [se] inclinar” (heb. ḥāwâ) é o mesmo, sendo que aqui, com o paralelo “sê senhor (heb. gebîr) de teus irmãos”, deixa claro que se trata de uma relação coerciva.[30] O que mais chama atenção, porém, é que essa realidade doméstica das relações fraternais é o fundamento para a primeira parte da “bênção”, a submissão e serviço (heb. ābad) de “povos” (heb. ‘ammîm) e “nações” (heb. le’ummîm), ou seja, o âmbito não é doméstico, mas cósmico, a partir da realidade política (lê-se monárquica e urbana), exatamente como no caso dos sonhos de José. Assim, a narrativa mostra que a história de José é o reflexo dessa “bênção” de Isaque sobre Jacó, além de ser cumprimento da promessa de deus a Abraão e Sara sobre os “reis” que procederão deles. Contudo, esperava-se que esses reis teriam mais a ver com o ideal de vida e fé de Abraão, que foi nômade/ peregrino e pastor, e não com um ideal das monarquias urbanas. Há, portanto, na narrativa, um desvio progressivo desse ideal abraâmico. Isaque “planta” e adquire um apetite pela “gordura da terra”; Jacó “habita” (heb. yāshab) na terra das peregrinações de Abraão (Gn 37.1); José, então, tem sonhos de “reinar”, como um típico déspota dos centros urbanos, que exploram as terras cultivadas. 


            Para concluir este post, quero deixar uma coisa clara: não se trata de uma escolha simples entre nomadismo e sedentarismo ou pastoralismo e agricultura, como se fosse uma escolha a respeito de qual “profissão” a família da aliança divina teria. Também não é a proibição do sedentarismo e da agricultura e nem a impossibilidade de desfrutar dos benefícios do sedentarismo e da agricultura. A escolha é entre dois modos de se viver no mundo, dois modos de organizar a sociedade e dois modos de se relacionar com o poder. O primeiro é típico de indivíduos e comunidades distantes dos centros de poder urbano como símbolos da monarquia exploradora, enquanto o segundo é típico de indivíduos e comunidades que compõem os centros de poder urbano. Isso é óbvio diante do fato de o chamado de Abraão (Gn 11) vir como uma resposta/ crítica divina ao tipo de estruturação da sociedade humana simbolizado pela Torre de Babel (Gn 11).[31] O desenrolar das narrativas patriarcais carregam essa tensão: será que essa família, por fim, se tornará um poder coercivo como o das outras nações? A única diferença é que eles foram escolhidos pela divindade? Não é isso que todas as outras nações também reivindicam?[32] Será que o Deus que chamou Abraão tem em mente preservar o cosmo por meio de um descendente seu que exercerá o mesmo tipo de poder coercivo que destruiu o cosmo tantas vezes? A resposta virá no próximo post, a partir da experiência de exílio e escravidão de José e da inserção da prioridade de Judá na narrativa.





[1] O termo “ciclo” é proveniente do hebraico tôledōt (port. gerações). O termo marca divisões literárias e narrativas importantes em Gênesis. Ver Robert Alter e Frank Kermode (orgs.), Guia Literário da Bíblia (São Paulo: Unesp, 1997), pp. 55-56; Marvin A. Sweeney, Tanak: A Theological and Critical Introduction to the Jewish Bible (Minneapolis: Fortress, 2012), pp. 45-49.


[2] Ainda assim, o texto já estabelece que se trata de uma “decisão firme” da parte de Deus, já que o sonho se repete, como no caso do faraó em Gênesis 41 (cf. 41.32). Ver John H. Sailhamer, “Genesis”, in The Expositor’s Bible Commentary, vol. 2 (Grand Rapids: Zondervan, 1990), p. 226. Isso não indica imanência, já que o tempo passado entre os sonhos e a conclusão da história é de vinte e dois anos. Cf. David A. Bosworth, The Story Within a Story in Biblical Hebrew Narrative (Washington: The Catholic Biblical Association of America, 2008), p. 62.


[3] Leon Kass, The Beginning of Wisdom: Reading Genesis (Nova Iorque: Free Press, 2003), p. 518, diz que se trata de um “sonho de domínio cósmico”. A mesma interpretação é sugerida por R. R. Reno, Genesis (Grand Rapids: Brazos Press, 2010), p. 263.


[4] Essa é uma forma diferente de relação entre a dinâmica familiar de Agar, Sara e Agar com o cosmo, que se dá no contexto da aliança. Ver o post anterior.


[5] Cf. Alan B. Lloyd (ed.), Gods, Priests and Men: Studies in the Religion of Pharaonic Egypt by Aylward M. Blackman (London: Routledge, 2011), p. 188. Até poderíamos desenvolver melhor essa comparação, pensando que a estrela, representando a família de Abraão, exercerá poder maior do que o sol, representando o poder político do Egito, mas isso iria além dos propósitos desse post.


[6] Cf. Timothy R. Ashley, The Book of Numbers (Grand Rapids: Eerdmans, 1993), p. 500. Essa identificação de corpos celestes com reis e poderosos é reflexo da associação dos corposo celestes com divindades. Grande parte do panteão do antigo Oriente Próximo é noemado a partir dos corpos celestes. Ver Mark S. Smith, O Memorial de Deus: História, Memória e a Experiência do Divino no Antigo Israel (São Paulo: Paulus, 2006), p. 150-2.


[7] Texto muito importante para nosso estudo, portanto será abordado mais a frente.


[8] Ainda que esteja inserido num período posterior, o texto é importante, pois diz respeito ao faraó.


[9] Meu propósito foi interpretar o segundo sonho de José a partir da imagem dos corpos celestes. Ron Pirson, porém, em “The Sun, the Moon and Eleven Stars: An Interpretation of Joseph’s Second Dream”, in André Wénin (org.), Studies in the Book of Genesis: Literature, Redaction and History (Leuven: Leuven University Press, 2001), pp. 561-658, sugere que o segundo sonho aponta para o tempo em que o primeiro sonho seria realizado. Para ele, os corpos celestes falam sobre suas funções como marcadores de tempos e seus números apontam para anos. A soma das onze estrelas com o sol e a lua, num total de treze, revela os treze anos que se passaram até José se tornar governante do Egito (cf. Gn 37.2 e Gn 41.46 ). Já o número de estrelas (onze), multiplicado pelos dois principais marcadores de tempo (o sol e a lua), totaliza vinte e dois, o que revela os vinte e dois anos entre os sonhos de José e o momento em que os irmãos se curvam diante dele no Egito (cf. 45.6; já havia se passado 7 anos de fartura + 2 anos de fome = 9 anos). Essa interpretação acrescenta um elemento importante nos sonhos de José e deve ser tomada em conjunto, e não em antagonismo, ao que apresentei aqui.


[10] Contra Gordon Wenham, Genesis 16–50 (Dallas: Word, Incorporated, 1998), p. 352.


[11] Esta palavra está diretamente ligada à “terra cultivada”. Cf. Jeffrey A. Fager, Land Tenure and the Biblical Jubilee: Uncovering Hebrew Ethics through the Sociology of Knowledge (Sheffield: JSOT Press, 1993), p. 89.


[12] Ver Ithamar Gruenwald, Rituals and Ritual Theory in Ancient Israel (Atlanta: Society of Biblical Literature, 2003), p. 44.


[13] Ithamar Gruenwald, Rituals and Ritual Theory in Ancient Israel, p. 74, diz que a Escritura apresenta os egípcios como um povo da cidade (cf. Gn 47.21; Êx 1.11). 


[14] Cf. Victor Hamilton, The Book of Genesis 18-50 (Grand Rapids: Eerdmans, 1995), p. 410.


[15] Ithamar Gruenwald, Rituals and Ritual Theory in Ancient Israel, p. 55.


[16] Ver Ithamar Gruenwald, Rituals and Ritual Theory in Ancient Israel, especialmente pp. 58-62 e 86-93, para uma explicação dessa preferência pelo nomadismo a partir do entendimento que a “terra” (heb. ’ădāmâ) é maldita (cf. Gn 3.17).


[17] Esses sonhos de elevação ao poder são conhecidos no antigo Oriente Próximo. Ver exemplos citados em John H. Walton, Genesis (Grand Rapids: Zondervan, 2001), pp. 663-4.

HH

[18] Cf. Thomas O. Lambdin, Gramática do Hebraico Bíblico (São Paulo: Paulus, 2003), pp. 198-9.


[19] Ver Victor Hamilton, The Book of Genesis, p. 410.


[20] Citado por Victor Hamilton, The Book of Genesis, pp. 410-1.


[21] John Sailhamer, “Genesis”, p. 227, diz que o significado de “inclinar-se” aqui é o reconhecimento de realeza e reinado. Isso fica claro quando vemos que Isaque, ao “abençoar” Jacó, pensando que se tratava de Esaú, fala o seguinte: “sirvam-te povos, e nações se curvem diante de ti” (Gn 27.29). Voltaremos a esse texto mais adiante.


[22] Enquanto inclinar-se, no texto bíblico, carregue conotações positivas de “respeito” e até “adoração”, há também possibilidades negativas, como “submissão servil”. Ver Bruce K. Waltke (ed. et. al.), Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento (São Paulo: Vida Nova, 1998), pp. 434-6. Para Ron Pirson, em Gênesis, em geral, como em 18.2, e até no ato em si dos irmãos de José em 42.6 e 43.26, 28, a conotação é de respeito e temor. The Lord of the Dreams: A Semantic and Literary Analysis of Genesis 37-50 (Sheffield: Sheffield Academic Press, 2002), p. 49. No entanto, as imagens dão o contexto para a interpretação do termo. Portanto, sim, “inclinar-se”, aqui, tem um significado negativo.


[23] A questão é se o ’et é sinal de acusativo ou preposição, “com”. 


[24] Acho notável que somente os filhos de Bila (Dã e Naftali) e Zilpa (Gade e Aser), as duas concubinas com status inferior ao de Raquel e Leia, sejam mencionados. Há uma questão hierárquica nítida aqui. 


[25] Dentre alguns textos bíblicos que poderiam ser usados para ilustrar isso, não há dúvida de que o mais relevante é 2Samuel 5.2. Esse texto tem a construção exata com ’et como sinal de acusativo e fala da ascensão de Davi como rei de Israel.  Cf. Victor Hamilton, The Book of Genesis, p. 406. Essa relação com Davi será importante no próximo post, quando considerarei o papel de Judá na narrativa. 


[26] Como foi possível ver, a construção do hebraico é bem diferente aqui. Uma tradução literal de Gn 43.18c seria: “foi para rolar contra nós e cair sobre nós e tomar a nós como escravos e aos nossos jumentos”. Uma tradução melhor seria: “foi para nos arrastar, subjugar, nos prender como escravos e confiscar nossos jumentos”.


[27] Ver Ithamar Gruenwald, Rituals and Ritual Theory in Ancient Israel, p. 78. 


[28] Podemos ver parte desse aspecto negativo de comidas “luxuosas” na história de Daniel (cf. Dn 1, especialmente v. 8). Walter Brueggemman diz: “Carne aponta para um estilo de vida rico… toma mais energia, mais trabalho, mais produção, mais competência e mais tempo para produzir carne para a mesa” (Texts Under Negotiation [Minneapolis: Fortress, 1993], p. 88). E esse “apetite” é típico de um estilo de vida urbano, bem oposto ao estilo de vida pastoral. O próprio Brueggemman aponta para isso logo em seguida, na página 89.


[29] Literalmente, “gordura da terra” (heb. ûmishmannê hā’ārets). 


[30] Contra Ron Pirson, The Lord of the Dreams, p. 49, que vê aqui uma attitude de respeito, e sem nenhum tipo de conotação de relações entre um rei e seus subordinados. A relação com o estilo de vida agrário/ urbano/ monárquico do apetite de Isaque, assim como com os sonhos de José, deixa claro que se trata de relações de autoridade e submissão coercivas.


[31] Daí a importância, também, dos encontros tensos entre os patriarcas e reis, como o faraó (Gn 12.10-20) e Abimeleque (ver Gn 20; 21.22-34; 26) – que, provavelmente não é um nome, mas sim um título dos reis filisteus, como faraó era um título dos reis do Egito. 



[32] É consenso que textos religiosos do antigo Oriente Próximo eram usados para fundamentar a reivindicação de poder por parte de reis, como no caso do uso que assírios e babilônios fizeram do conhecido Enuma Elish. É interessante, contudo, que esse uso pode ter mais a ver com aspirações políticas pelo poder que se deseja do que reivindicações políticas pelo poder que já se tem, ver Mark S. Smith, O Memorial de Deus: História, Memória e a Experiência do Divino no Antigo Israel, p. 149-150. Isso é extremamente relevante para as narrativas patriarcais, pois fala sobre as origens de um povo à sombra de poderes políticos como da cidade de Ur, o Egito e a Filístia, ainda sem nenhum tipo de poder. Além disso, pode ser muito relevante para uma realidade judaíta pós-exílica, uma comunidade sem poderes políticos à sombra de grandes impérios que a dominava.